O domo do telescópio High Altitude THz Solar photometer (HATS) no observatório Carlos Cesco se destaca no entardecer dos picos andinos. Fonte: Guido Cerrato, Domos Lab.
A Astronomia é a ciência das ondas eletromagnéticas. Praticamente todo nosso conhecimento sobre o Universo é obtido por meio de observações em alguma banda de frequências eletromagnéticas. Acompanhamos o movimento dos astros, observamos os surtos de intensidade no seu brilho, analisamos seu espectro. É com base nessas informações que podemos traçar o mapa do Cosmos, explicar sua origem, prever seu futuro. No início, usava-se apenas a luz que captam os olhos para descrever os Céus. Conforme a tecnologia foi avançando, novas bandas espectrais foram incorporadas e, assim, hoje temos telescópios que detectam ondas eletromagnéticas de quilômetros de comprimento (frequências de 300 kHz ou menores) até milésimos de nanômetros (frequências de centenas de EHz* ou superiores). Pode parecer que tudo já foi explorado e que só falta melhorar em sensibilidade e resolução os nossos instrumentos. No entanto, há uma região espectral que ainda é pouco conhecida.
Entre 300 µm (1 THz), o chamado sub-milimétrico, e 1 µm (300 THz*), o infravermelho, poucos instrumentos foram construídos. Os motivos para sua ignorância são variados, mas, dois se destacam: a tecnologia e atmosfera terrestre. Detectores para frequências acima de 1 THz ainda são experimentais, muito caros e difíceis de manipular. Detectores para o infravermelho eram, até recentemente, classificados como tecnologia militar e, portanto, sua venda muito restrita. Por outro lado, a atmosfera terrestre é um escudo perfeito para as frequências acima de 1 THz, não deixando passar quase nada da radiação externa, sendo que esse efeito só se mitiga perto dos 15 THz.
Desde o início do novo milênio, o Centro de Rádio Astronomia e Astrofísica Mackenzie (CRAAM), da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo (Brasil), vem desenvolvendo instrumentação para observar o Sol nessa banda espectral. O pioneiro dessas pesquisas foi o Dr. Pierre Kafmann (1938 – 2017) quem desenvolveu um conceito de telescópio THz. O primeiro protótipo, chamado de Solar-T, voou em balão estratosférico acima da Antártida, em janeiro de 2016. Desimpedido da barreira atmosférica, o Sol foi observado nas frequências de 3 e 7 THz (100 µm e 43 µm). O inesperado falecimento do Dr. Kaufmann impediu que ele pudesse terminar um telescópio semelhante para colocar em solo: o High Altitude THz Solar photometer (HATS).
HATS, igual que seu antecessor Solar-T, usa como detector uma célula de Golay, um detector desenvolvido no início do século XX e que é capaz de detectar mudanças muito fracas na intensidade da luz incidente. Células de Golay estão compostas por uma câmara de gás com uma lâmina de metal refletivo dentro. A luz que incide na célula faz o gás mudar de temperatura, o metal refletor altera sutilmente sua curvatura e assim um feixe laser detecta sua deformação, que está associada à variação da energia entrante. No entanto, a célula reage a praticamente qualquer banda espectral. Para observar uma frequência específica, devemos usar um filtro passa-banda. O CRAAM trabalhou em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para desenvolver filtros de malha ressonante. Vinte anos atrás, não havia empresas comerciais que os fabricassem. HATS tem filtros passa-banda centrados na frequência de 15 THz (20 µm).
Modelos teóricos indicam que a uma altura de aproximadamente 2.500 m sobre o nível do mar, a atmosfera permite realizar observações a 15 THz sem afetar demasiadamente a radiação do Sol. Por esse motivo, o HATS está sendo instalado na estação Carlos Cesco do Observatório Astronómico Félix Aguilar (OAFA), pertencente à Universidad Nacional de San Juan (Argentina), que se encontra na região de Calingasta, em frente aos picos mais altos da América. Sua primeira luz era prevista para novembro de 2019, mas o falecimento do Dr. Kaufmann e a pandemia adiaram este feito que, esperamos, acontecerá nos primeiros meses de 2022, assim que as obras de infraestrutura e a integração do telescópio permitirem.
A função principal do HATS é observar explosões solares intensas numa região espectral nunca antes vista. Embora tenhamos diversas expectativas sobre o comportamento solar nessas frequências, a verdade é que qualquer resultado será inédito. Nossa missão é abrir uma janela para Sol e permitir que uma nova luz seja detectada para completar o quebra-cabeça. Como sempre aconteceu quando uma nova janela foi aberta, uma surpresa à espreita abriu novos caminhos para o conhecimento do Cosmos.
Para saber mais: “HATS: A Ground-Based Telescope to Explore the THz Domain”, artigo em inglês publicado na revista Solar physics em 2020. Link à versão gratuita no site ArXiv.
* Hz = unidade de frequência, corresponde a uma oscilação por segundo. kHz = quilo-hertz; THz = tera-hertz ou 1012 Hz; EHz = exa-hertz ou 1018 Hz.